Duas horas depois, Pedrinho e seu companheiro de jornada reuniram a reduzida bagagem que traziam e reiniciaram a viagem para o Iguatu.
A estrada que percorriam era larga e bem-feita. Juazeiros com os ramos verdes estendiam pelo chão as manchas largas de sua sombra. Não cruzaram, em caminho, com outros viajantes. Naturalmente, a ameaça do vulcão fizera fugir todas as pessoas daquela região. Pedrinho notou que o seu companheiro, de vez em quando, interrompendo a palestra, parava um momento e abaixava-se para apanhar no chão um objeto qualquer.
A princípio o menino não deu importância ao caso, mas sua repetição constante começou a chamar-lhe a atenção.
Reparou, então, que o curioso viajante era de uma sorte incrível para achar objetos ocultos; pôde observar que, em menos de uma hora, achara duas chaves, três anéis, uma corrente de ouro, cinco ou seis moedas, uma faca e outros objetos de menor importância.
"É incrível!", pensava Pedrinho. "Como pode esse homem achar tanta coisa, enquanto eu, por mais que arregale os olhos, não consigo achar uma simples ferradura?" Devia, ser, naturalmente, algum dom extraordinário que o cavalheiro de barba loura possuía, e que lhe facultava a posse de todos os objetos perdidos no mundo.
Ao vê-lo, finalmente, arrancar do meio da areia da estrada uma espécie de rosário de contas avermelhadas, não se conteve e observou, com um sorriso de admiração:
– Nunca vi sorte como a sua para achar coisas perdidas!
– Não é questão de sorte, meu jovem amigo – respondeu-lhe o homem da barba loura –, trata-se, apenas, de uma habilidade que possuo, e que consegui adquirir com o auxílio de pedacinhos de um botão durante o tempo em que estive preso!
– Pois olhe, eu já me admiro muito de que uma habilidade ajude tanto o senhor, mas não percebo o que possam ter os pedacinhos de botão com isso.
– Pois é a pura verdade – replicou ele calmamente. – É a pura verdade.
E, querendo satisfazer a viva curiosidade de Pedrinho, narrou-lhe o seguinte:
– Meu nome é Miguel e sou natural da Rússia. Nasci em Moscou, a famosa capital. Quando tinha vinte anos, mais ou menos, influenciado por alguns companheiros de estudos, tomei parte numa conspiração contra o governo do czar. Inútil será dizer que os nossos planos foram descobertos e todos os conspiradores presos. Graças à intervenção de um amigo da família, livrei-me de ser enviado para a Sibéria. Condenaram-me, ainda assim, a quinze anos de prisão, em Moscou. Nos primeiros meses de cárcere, fui torturado por um tédio horrível. Não tinha que fazer durante o dia inteiro. Passava-os, a fio, sentado estupidamente em urna laje da cela, procurando descobrir um meio qualquer de me distrair, alguma coisa com que me ocupar. Um dia, arranquei um dos botões da minha roupa. Quebrei-o em vários pedaços, ajuntei-os na palma da mão e pus-me a refletir sobre o que faria com eles, quando, distraindo-me, deixei-os cair no chão. Este incidente, que noutras circunstâncias seria trivial, sugeriu-me um passatempo excelente – procurar os pedacinhos de botão. E assim, depois de reuni-los na mão, fechava os olhos e atirava-os a esmo para o ar. Isso feito, punha-me a procurá-los e não descansava enquanto não os tinha apanhado um por um. Repeti essa proeza, uma ou mais vezes por dia, durante os quinze anos em que estive preso. A distrair-me assim, desenvolveu-se em mim um golpe de vista extraordinário que me proporciona hoje a habilidade de descobrir os menores objetos ocultos. Sou capaz de achar um grão de trigo perdido no meio de um areal. O interesse que demonstrei pelo lago, junto ao qual estivemos parados, foi motivado pelo fato de eu ter percebido que havia um objeto qualquer, talvez de grande valor, abandonado no fundo. Voltarei mais tarde para buscá-lo.
E, sorrindo à estupefação de Pedrinho, o antigo prisioneiro russo acrescentou:
– Há três anos que consegui fugir do meu país. Hoje vivo exclusivamente da habilidade que adquiri na prisão. Vim ao Brasil à procura de diamantes. Já estive em Mato Grosso e Goiás. Pretendo montar, numa grande cidade, uma grande agência de "Perdidos e Achados", que prestará inestimáveis serviços à população.
E, depois de uma pequena pausa, disse resoluto:
– Pude notar que você é um menino valente e discreto. Quer ser meu auxiliar?
E, sem esperar que Pedrinho respondesse, afastou-se e, abaixando-se, a alguns passos mais, apanhou no chão uma bolsa escura de couro que se ocultava sob as folhas secas, ao lado da estrada.
Meditou Pedrinho sobre a curiosa história de Miguel, o russo, e concluiu que um homem ativo e inteligente, mesmo no fundo escuro de uma prisão, pode adquirir, com auxílio de uma insignificância qualquer, uma habilidade extraordinária, capaz de proporcionar-lhe, mais tarde, uma útil e rendosa profissão.
Miguel era o "homem que tudo achava" ou melhor "o homem que tudo via".
* Júlio César de Melo e Sousa, escritor, matemático brasileiro e um mestre na arte de contar histórias, um dos maiores divulgadores da matemática no Brasil, é famoso no Brasil e no exterior por seus livros de recreação matemática e fábulas e lendas passadas no Oriente, muitas delas publicadas sob o heterônimo/pseudônimo de Malba Tahan. Seu livro mais conhecido, O Homem que Calculava, é uma coleção de problemas e curiosidades matemáticas apresentada sob a forma de narrativa das aventuras de um calculista persa.
sábado, 14 de março de 2009
O homem que tudo achava
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2 comentários:
Gostei do texto do homem que tudo via, acho que vou ler o livro para saber mais sobre esse autor brasileiro.
Gostei bastante do texto 🤩🤩
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